Dizem os aficionados por leitura que um bom livro tem o poder de fazer o leitor viajar. Concordo integralmente e acrescento: para mim, o rádio cumpre dignamente o mesmo papel. Ouço rádio todos os dias, religiosamente. Às vezes ao acordar, enquanto faço a higiene matinal. Outras vezes à noite, procurando relaxar após cumprir as exigências do dia. No carro... e até nas madrugadas, teimando em não dormir. Minha predileção é quase sempre pelas rádios clássicas, que são para mim um portal onde alcanço pessoas, épocas e lugares que a realidade nua e crua não acessa.
Não sei qual bicho me picou, que ando sempre escacaviando algum baú, vasculhando álbuns, estudando épocas e costumes de outrora e ouvindo coisas antigas, como se quisesse me teletransportar para um tempo anterior ao meu, já inalcançável. Acho que o bicho da melancolia. Se Allan Kardec estiver certo, se é mesmo verdade que um espírito se aventura por inúmeras existências, devo ter sido afortunadamente feliz em outra encarnação, em outro tempo-espaço, que não este. Isso explicaria meu comportamento sistemático de querer voltar a algum lugar que não me recordo. Não que eu não seja feliz agora, mas a insistente curiosidade por tempos já idos me levanta a suspeição de que Kardec esteja mesmo com a razão.
As modernidades têm suas vantagens e eu não me fecho para isso. Os serviços de áudio por streaming ajudam a realizar pesquisas específicas, permitem ouvir o que se quer e na hora que se quer, afagando cada vez mais nosso ego e imediatismo. Mas não há nada como o fator surpresa do rádio. Ouvir uma música sem adivinhar qual será a próxima. Me fascina a ideia de ouvir uma emissora de uma cidadezinha qualquer, de um canto bem longe, e imaginar que estou ingressando naquele lugar, sabendo o que se passa ali e experimentando da cultura de seus nativos. Tenho ouvido bastante a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, que é uma ode à música brasileira. Para não dizer que sou de tudo antiquada, ouço justamente porque os aplicativos de hoje me dão esse luxo. Chorinhos, sambas, valsas... como ouvir uma “Conversa de Botequim” e não devanear como seria sentar à mesa ao lado do grão-mestre Noel, conversando amenidades e tendo como pano de fundo o Rio de Janeiro dos anos 30? No calor carioca, uma cerveja não cairia mal, enquanto lhe ouviria contar sobre seu arrebatamento pela prostituta Ceci, que mais adiante foi a razão de seu infortúnio: uma depressão que lhe fragilizaria frente a outros males. Noel Rosa, a julgar pelo acervo que deixou, parecia ser daqueles sujeitos malandros, que não perde o humor por pouca coisa, boêmio e que sabia aproveitar os prazeres da vida. Morreu jovem, aos vinte e sete anos incompletos, vencido pela tuberculose, o que não era pra menos, dada sua afeição ao cigarro, à bebida e às noitadas, mas caberia um século na intensidade do pouco que lhe coube viver. Outros personagens me instigam ao mesmo exercício imaginativo. Imagine você, caríssimo leitor e caríssima leitora, voltar ao século XIX e ver Chiquinha Gonzaga tocar Corta-jaca no piano em sua antessala... ou assisti-la dar aulas de piano para as crianças de sua época. Ela, a quem são atribuídas mais de 2 mil canções, dentre as quais a primeira marchinha de carnaval brasileira. Mulher que nasceu sob o jugo dos costumes do período imperial, mas escolheu não se sujeitar. Foi abolicionista, ousou romper um casamento forçado e ser artista, em um tempo em que mulher só existia da casa para dentro. Uma feminista antes do feminismo. É o rádio o amigo em comum que me apresenta e me aproxima de Chiquinha, Noel, Cartola e outros tantos.
Dentro da minha rotina, o rádio sempre houve e sempre haverá. Foi o primeiro brinquedo, um grato presente de minha mãe, como quem adivinhava o objeto de minha devoção. É a lembrança da casa de fazenda, sempre tocando em um canto da sala ou sobre o guarda-louças na cozinha. Foi a profissão que me ocupou por dezesseis anos e hoje é meu companheiro de viagens imaginativas pelo tempo.
Gabrielly Frutuoso
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