Não sei dizer a primeira imagem que fui capaz de gravar na memória. Outro dia li o Graciliano Ramos, em seu clássico Infância, e me chamou atenção o escritor afirmando no parágrafo de abertura do livro categoricamente que a primeira coisa que guardou em sua lembrança foi “um vaso de louça, cheio de pitombas, escondido atrás da porta”.
Simplesmente incrível.
Fiquei me perguntando, “bestando” deitado na rede: qual a primeira cena que guardei na memória?
Lembrança é um negócio que embaça, confunde a gente. As retinas já fatigadas. Temporalidades se misturam, e logo não sabemos mais precisar nem tempo e nem lugar onde se deu tal acontecido.
A memória é um pandemônio.
O tempo voa quando a gente começa a pensar.
Depois de muito queimar as pestanas do juízo, acho que a primeira lembrança que guardo é a de brincar no chão de minha antiga casa. Não tenho nítida a cena, antes, lembrar é como penetrar um caleidoscópio de imagens e sensações. O piso de cimento vermelho queimado, uma ruma de brinquedos espalhados: carrinhos, bonecos, jogos de botão, bolinhas de gude…
Eu estou ali tão criança ainda – não tenho como precisar a idade –, vendo o mundo de baixo para cima. Arrastando-me pelos poucos vãos da casa, tentando ficar em pé e caminhar no rumo de minha mãe, que lava pratos na cozinha, de costas para mim. No caminho, uma mesa com toalha estampada branca e listras vermelhas… Um jarro de porcelana com flores amarelas… Um quadro de Jesus na parede que parece me perseguir com o olhar. A casa é um murmurar de vozes… Pernas humanas que passam de um lado para outro, e quase me pisoteiam…. Um rádio sobre o balcão, faz barulho, muitas vozes…
Eu quero me integrar aquele mundo, mas fico ali sem saber falar, distante, incomunicável, solitário.
Grito…
Abro o berreiro…
Choro…
Até que alguém me pega e coloca nos braços…
“O que foi, menino?”
De repente, tudo se dissipa…
Não me parece totalmente real isso que descrevi, é um tempo distante, inalcançável.
Talvez a memória me pregou uma peça.
É impossível guardar plenamente o passado.
Mas é assim que consigo lembrar.
Por Bruno Paulino, poeta e escritor.
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