quinta-feira, 22 de junho de 2023

Reminiscência


Não sei dizer a primeira imagem que fui capaz de gravar na memória. Outro dia li o Graciliano Ramos, em seu clássico Infância, e me chamou atenção o escritor afirmando no parágrafo de abertura do livro categoricamente que a primeira coisa que guardou em sua lembrança foi “um vaso de louça, cheio de pitombas, escondido atrás da porta”. 

Simplesmente incrível. 

Fiquei me perguntando, “bestando” deitado na rede: qual a primeira cena que guardei na memória?

Lembrança é um negócio que embaça, confunde a gente. As retinas já fatigadas. Temporalidades se misturam, e logo não sabemos mais precisar nem tempo e nem lugar onde se deu tal acontecido. 

A memória é um pandemônio. 

A vida foge irreversível, como falou um poeta romano, talvez Virgílio, fugit irreparabile tempus. 

O tempo voa quando a gente começa a pensar. 

Depois de muito queimar as pestanas do juízo, acho que a primeira lembrança que guardo é a de brincar no chão de minha antiga casa. Não tenho nítida a cena, antes, lembrar é como penetrar um caleidoscópio de imagens e sensações. O piso de cimento vermelho queimado, uma ruma de brinquedos espalhados: carrinhos, bonecos, jogos de botão, bolinhas de gude… 

Eu estou ali tão criança ainda – não tenho como precisar a idade –, vendo o mundo de baixo para cima. Arrastando-me pelos poucos vãos da casa, tentando ficar em pé e caminhar no rumo de minha mãe, que lava pratos na cozinha, de costas para mim. No caminho, uma mesa com toalha estampada branca e listras vermelhas… Um jarro de porcelana com flores amarelas… Um quadro de Jesus na parede que parece me perseguir com o olhar. A casa é um murmurar de vozes… Pernas humanas que passam de um lado para outro, e quase me pisoteiam…. Um rádio sobre o balcão, faz barulho, muitas vozes… 

Eu quero me integrar aquele mundo, mas fico ali sem saber falar, distante, incomunicável, solitário.

Grito… 
Abro o berreiro… 
Choro… 
Até que alguém me pega e coloca nos braços… 

“O que foi, menino?” 

De repente, tudo se dissipa… 

Não me parece totalmente real isso que descrevi, é um tempo distante, inalcançável. 

Talvez a memória me pregou uma peça. 

É impossível guardar plenamente o passado. 

Mas é assim que consigo lembrar. 

Por Bruno Paulino, poeta e escritor.

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