Num dia distante do ano de 1945, a pequena cidade de Quixeramobim
vivia uma expectativa tensa. A vitória dos Países Aliados significaria o fim da
segunda Guerra Mundial. Essa espera não era somente da pequena cidade do sertão
central do Ceará, mas também do país todo, e de quase que o globo mundial.
Naquela época, o
meio mais eficaz para se inteirar das notícias que corriam o mundo era através
das ondas do rádio, e um grupo de homens, dentre eles o senhor Pedro Coutinho,
o senhor Luís Almeida, e o engenheiro Doutor Garcia, juntaram-se e compraram o
aparelho.
Aquele pequeno
grupo se reuniu na casa do senhor Luís Almeida, local onde o rádio fora
instalado, quando, de repente, escutou-se um grito vindo lá de dentro da
residência: “Hitler está morto!”. A notícia rompeu o silêncio na cidade e
rapidamente se espalhou pelas ruas. O senhor Pedro Coutinho saiu para sua
residência, localizada à época na mesma casa que atualmente ostenta o numeral
74 da rua Antônio Manoel de Oliveira, de frente para a praça Coronel João
Paulino. No caminho, ele dava a notícia a todo transeunte que encontrava, e
logo uma aglomeração de pessoas festejando passou a segui-lo.
Da calçada de
casa, Pedro Coutinho viu que já tinha se formado uma pequena multidão. Lá
tiveram a ideia de fazer um boneco do vilão mundial para comemorar aquele
episódio tão aguardado. Um Judas. Rapidamente fizeram o boneco, meteram-no uma
farda velha e surrada, e alguém lhe passou uma graxa, imitando um bigode preto
no rosto do bicho feio.
Devido ao bom
inverno daquele ano, ainda era tempo de rio cheio, e alguém gritou: “joga da
ponte!”. Palmas, gritos e assovios eufóricos ressoaram do meio daquela gente
toda aprovando a ideia. Agora era preciso levar Hitler até a ponte metálica, o
seu destino final. Foi então que o filho do Pedro Coutinho, o menino Lisboa,
que tinha por volta dos seus dez anos de idade, imaginou pedir emprestado a
padiola do senhor Antônio Né.
— Seu Antônio Né, por favor, o senhor me empreste a
sua padiola pra gente levar o boneco pra ponte?
— Que boneco é esse menino?
— O Hitler, o senhor não está sabendo?!
— Ah, sim. Pode pegar, mas quando terminar a
brincadeira traga de volta!
— O senhor tem minha palavra!
Satisfeito,
Lisboa levou a padiola para o meio da multidão, que logo escanchou o boneco do
genocida nela. Saíram então em direção à ponte metálica numa procissão de
purgação. Durante o trajeto o boneco sofria. Foi uma verdadeira expiação com
facadas no bucho, pedradas pelo corpo todo e tapas no rosto.
Já na ponte, o
menino Lisboa, pequenino, ficou mais para trás, enquanto uma aglomeração mais
densa se formou ao redor do Hitler na padiola. Mais afastado, ele escutou a
gritaria, e soube que logo atirariam o vilão ao rio. Subindo numa das colunas
de ferro da ponte, viu o boneco suspenso pelo ar com padiola e tudo, e então
percebeu que os arremessariam dali. Sem poder chegar perto o suficiente para
interferir, ele viu Hitler amarrado ao instrumento, voando em direção às águas,
e logo desaparecendo nas profundezas do rio Quixeramobim.
“E agora, o que eu faço?”, pensou Lisboa apreensivo.
Foi então que decidiu voltar para casa e contar logo para o pai:
— Papai, prometi devolver a padiola do seu Antônio Né,
mas eles jogaram o Hitler no rio com padiola e tudo! — o menino falou quase num
choro.
— Moleque, como que você faz isso!
Homem honrado,
Pedro Coutinho não poderia deixar o filho naquela situação. Mesmo que ainda
fosse uma criança, quebrar uma promessa era grave, e ele precisa ensinar essa
lição. Foi então que teve a ideia de mandar o filho ir até um flandeiro, de
apelido Moleque, encomendar uma padiola nova para entregar no dia seguinte.
Naquela ocasião, o homem não tinha nenhuma pronta nem o material para a
produção, e junto de Lisboa foram até os barracões existentes para a construção
da barragem. Lá arrancaram uma folha de zinco. Para cumprir a promessa e
devolver o objeto na manhã seguinte, tiveram que passar a madrugada toda
trabalhando na produção da nova padiola.
No dia seguinte o
menino envergonhado foi devolver a peça.
— Olha seu Antônio Né, o senhor vá me desculpando, mas
a sua padiola tá no fundo do rio agora. Mas não se preocupe, eu trouxe uma
novinha para o senhor.
— É moleque, você é mesmo um homem de palavra!
E foi assim que
num dia do ano de 1945 a guerra findou, Hitler caiu morto no fundo do rio
Quixeramobim, e a promessa estava paga.
Por Eduardo Coutinho
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