quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Guardião de memórias: Eduardo Coutinho fala do livro de estreia e da paixão por antiguidades

Eduardo Coutinho

Eduardo Coutinho é um servidor público apaixonado por antiguidades e pelas artes. Colecionador de fotografias e objetos raros que contam sobre o Quixeramobim do passado, escritor sensível e de aguçado senso descritivo, artista plástico disciplinado, interessado em filosofia... a lista de atividades a que se dedica é longa. “Inquieto” talvez seja um bom adjetivo para esse jovem desbravador. E dessa inquietude tem resultado uma vasta produção nos últimos anos, incluindo a criação, em 2020, do Instituto Quixeramobim Histórico, projeto que toca ao lado da mãe, a professora de artes Ludmila do Rêgo, que conta com um acervo sem-número de fotografias e outros objetos de valor histórico. A ideia deu tão certo que o Quixeramobim Histórico acabou virando a principal referência quando se fala em museu digital na região, tendo realizado exposições próprias e contribuído com seu acervo para outros curadores.

Nosso guardião de memórias, em fevereiro deste ano, também lançou seu primeiro livro. E a trama não poderia ser outra, senão um romance histórico que se passa na Quixeramobim do início do século XX. Nas 102 páginas de “Eulália”, Eduardo Coutinho desenvolve uma história inusitada e envolvente, daquelas de ler devorando.

Em entrevista à Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes (AQUILETRAS), o autor fala de suas facetas, que o levam a transitar por diferentes formas de expressão. O bate-papo é conduzido pela acadêmica Gabrielly Frutuoso.

Gabrielly Frutuoso – “Eulália”, seu livro de estreia lançado no início deste ano, é um romance regionalista que mescla ficção e realidade. Como foi o processo de criação desde o surgimento da ideia até a conclusão do projeto?

Eduardo Coutinho – A ideia de transformar em romance a história real foi recente, acho que a tive há três anos. Contudo, a história que inspirou o livro permeia o meu ambiente familiar desde a infância. Não lembro a data exata em que a conheci, mas provavelmente foi na casa do meu bisavô, em algum dia em que minha tia Hilda mostrava fotografias antigas, e uma delas era do campo de pouso. Então ela narrou a história da moça que se apaixonou pelo aviador que inaugurou o primeiro campo de pouso de Quixeramobim. É um fato inusitado, e, ao conhecê-lo pela primeira vez, é impossível não pensar: “isso daria um bom filme” ou “que bela história para um livro”. Quando comecei a escrever o romance, não tive muitas dificuldades, apesar de ser meu primeiro livro, pois a história já estava bem estruturada em minha cabeça, com começo, meio e fim definidos, o que facilitou transpô-la para o papel. Acredito que foi um processo de criação mais fácil do que uma história inventada por inteiro.

Gabrielly Frutuoso – Antes de lançar um romance, você já havia ganhado notoriedade com a publicação de crônicas em jornais do estado e no próprio site da academia. Para você, qual a diferença entre escrever crônicas e escrever um romance? 

Eduardo Coutinho – Antes de tudo, há o tempo. Uma crônica, muitas vezes, é escrita em um dia, já o romance pode levar meses. A crônica, para mim, é o resultado de uma motivação instantânea, de um fato que vejo ou de um sentimento experimentado, aí já imagino os textos que dariam, e logo as ideias vão para o papel, ou se não tiver papel por perto, ou estiver no trânsito, envio um áudio num aplicativo de celular, porque aquela ideia pode se perder logo. Com o romance não, é algo planejado por muito tempo e que demanda mais trabalho e pesquisas. Não pode ser rápido. 

Gabrielly Frutuoso – Qual o perfil do Eduardo-leitor? Com que frequência você lê e quais gêneros chamam sua atenção?

Eduardo Coutinho – Eu leio de tudo e todos os dias! Minha primeira leitura é logo pela manhã, quando tenho o costume de tomar café lendo um ou dois jornais. Gosto de ler principalmente as crônicas neles publicadas. Sempre estou lendo um ou dois livros de ficção, não consigo ficar somente com um. Às vezes, até mais livros ao mesmo tempo. Por que ficar numa história só, se é possível conhecer mais e ao mesmo tempo?! Há também as leituras da filosofia, que são fundamentais na minha vida. Não consigo definir um gênero preferido, há tanta coisa boa na literatura que é impossível definir uma preferência. O último livro que terminei de ler foi a “A fome” de Rodolfo Teófilo, e atualmente estou lendo “O Mito de Sísifo” de Camus e “Perto do Coração Selvagem” de Clarice Lispector, além de outros livros de filosofia.

Gabrielly Frutuoso – “Eulália” é um romance de época, explicitando um traço pessoal seu que é o gosto por objetos e histórias antigas. Você consegue descrever de onde vem esse interesse constante por reviver o passado? Você se considera um nostálgico crônico? 

Eduardo Coutinho – Acredito que esse gosto veio, em parte, do meu ambiente familiar e do modo como fui criado. Na minha família, foram preservadas muitas fotos antigas do século passado e elas sempre foram objeto de conversas durante os encontros. Sempre que eu percebia um tio falando de uma história antiga me aproximava para escutar. Acho que isso despertou meu interesse pelo passado. Acredito também que ter saído cedo de Quixeramobim para estudar na capital preservou em mim, e muito viva, a lembrança daquela alegria intensa da infância, que nunca mais é experimentada. A volta à terra natal, as expectativas das histórias, sempre querer saber o que aconteceu quando se estava longe, cria uma forte ligação com as origens. Gosto de pensar que ficar olhando fotos antigas e imaginando como foi aquele tempo e como aquelas pessoas viveram é uma forma de ficção também; é imaginação, e isso me causa grande prazer. Com certeza, sou nostálgico, até mesmo daqueles tempos que nem vivi.

Gabrielly Frutuoso – E o Quixeramobim Histórico, como começou?

Eduardo Coutinho – Começou quando percebi que não existia nada em Quixeramobim que tratasse do passado da cidade. Não há museu em nossa cidade, nem mesmo uma biblioteca pública onde se possa pesquisar sobre a história local. Por outro lado, na minha casa, há um considerável acervo de fotografias antigas. Então, tive a ideia de postá-las no Instagram, contando um pouco da história de cada uma delas. Inicialmente, postei fotos do acervo familiar, depois comecei, junto de minha mãe Ludmila, a manter contato com outras pessoas que contribuíram com seus acervos também, emprestando ou doando. Hoje, temos uma quantidade significativa de objetos históricos de Quixeramobim.  

Gabrielly Frutuoso – Quixeramobim é uma das cidades mais relevantes do Ceará em termos histórico-cultural, no entanto, muito desse patrimônio perdeu-se no tempo e na inércia do poder público. Alguns memorialistas, em diferentes épocas, tentaram preservar o que foi possível. Atualmente você desponta como um dos memorialistas do seu tempo. Você carrega algum ideal para Quixeramobim? Qual o seu grande objetivo como colecionador de memórias? 

Eduardo Coutinho – Tenho um sonho de um dia ver o patrimônio histórico que ainda resta na cidade efetivamente preservado pelo poder público. Gostaria de poder andar pelo centro histórico e vê-lo todo organizado, sem poluições sonoras ou visuais que o descaracterizam, com o antigo calçamento restaurado, como em outras cidades históricas, e não substituído. Queria ver o progresso, que é necessário, emergindo junto com a preservação patrimonial. Mas infelizmente, hoje, ele é um predador feroz, e nossa história é uma vítima frágil, defendida por poucos. Meu grande objetivo é deixar de ser apenas um colecionador, algo que remete a uma ideia de particular, e criar um museu físico aberto ao público, para que a comunidade possa conhecer de perto a história da cidade e as suas origens. É uma tarefa difícil, principalmente pelos custos e pela falta de incentivo. 

Gabrielly Frutuoso – Voltando à literatura, qual retorno que você recebeu do público a respeito de “Eulália”? 

Eduardo Coutinho – Fiquei muito feliz com a receptividade, que julgo ter sido boa. É muito satisfatório encontrar alguém que já leu o seu livro e responder às perguntas sobre aquela história que criei. Alguém pergunta “onde ficava a casa da Eulália?”, e então tento explicar como a imaginei. Geralmente, o leitor pensou de outra forma, e aí consigo perceber o interesse que o livro despertou. Acredito também que, por ser uma história ambientada em um cenário conhecido pela maioria dos leitores, isso gerou uma curiosidade maior. No geral, acho que as pessoas gostaram. 

Gabrielly Frutuoso – Você já tem trabalhos previstos no campo da literatura que possa nos apresentar uma prévia? Quais os planos do Eduardo-escritor? 

Eduardo Coutinho – Planos, tenho muitos! Depois que entrei nesse mundo da escrita, parece que tudo é motivo para um texto. Tenho um caderno de anotações e ando sempre com ele para não perder uma ideia repentina. Já tenho algumas ideias guardadas para o futuro, que podem virar uma crônica ou um romance. Atualmente, estou trabalhando no meu segundo livro. Ainda está bem no começo, na fase da organização das ideias, mas posso adiantar que se passa no sertão, em tempos passados.

Gabrielly Frutuoso – Além de escritor e memorialista, você também se dedica à pintura. Curiosamente todas são atividades ligadas ao campo das artes e da cultura, o que contrasta com a sua atividade profissional. O que o Eduardo-servidor-público preserva de semelhança com esse outro Eduardo interessado nas delicadezas da arte e da cultura? Além disso, quais situações do dia a dia provocam seu instinto criativo? 

Eduardo Coutinho – Para o escritor tudo pode ser inspiração. Já li algumas entrevistas de escritores, e muitos dizem que vão a praças, sentam em cafés, andam pelas ruas dos centros das cidades observando a vida, o jeito das pessoas, as relações que mantêm entre si, como uma espécie de laboratório de ideias. Às vezes, gosto de fazer isso também. No meu trabalho, costumo dizer que encontro também a vida real, e, na maioria das vezes, de uma forma triste. O contato direto com a população no meu ambiente profissional também é uma fonte intensa de sensações, sentimentos e relações. A ideia criativa pode surgir a qualquer momento e de qualquer situação. Penso que estou cercado de estímulos, e todos podem se relacionar: uma situação no trabalho pode gerar uma ideia de texto, e uma frase de um texto pode me dar uma ideia para um quadro. Tudo está conectado.

Gabrielly Frutuoso – Qual item do seu acervo pessoal lhe é mais caro? Por quê?

Eduardo Coutinho – Acredito que o objeto mais importante para a história de Quixeramobim que possuo é o livro que contém a tese de formatura do médico e quixeramobiense Dr. Álvaro Otacílio Nogueira Fernandes. A tese é datada de 1899, quando o médico se formou na faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Trata-se de um objeto com 125 anos de existência! Quando o recebi da neta dele, estava frágil, com as folhas soltas e quebradiças. Não tive dúvidas e logo pesquisei o melhor restaurador de livros antigos do país. Foi então que descobri que ficava na cidade de São Paulo. Lembro do medo que senti do livro se extraviar no avião, então o levei junto ao meu corpo para não o perder de vista. Fui até lá e entreguei-o ao artesão. Depois de alguns meses o recebi de volta, totalmente restaurado, e agora o livro está preservado em condições ideais. Foi um gasto considerável, mas valeu a pena diante da importância histórica que o item tem para Quixeramobim. Contudo, esse é o objeto mais importante para a história de nossa cidade. Já para mim, o objeto de maior apreço é o relógio de parede, de funcionamento a corda, que pertenceu ao meu bisavô Pedro Gomes Coutinho. Segundo minha tia-avó Hilda, o relógio tem origem alemã e foi comprado no ano de 1947. Ele também foi entregue aos cuidados de um especialista e está totalmente restaurado e em pleno funcionamento.

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