quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Do cometa ao relógio


Por Eduardo Coutinho

É difícil definir o que é o tempo. Vivemos eternamente no presente, criando o passado e esperando o futuro. Essa é a maneira mais intuitiva de descrevê-lo. Durante toda a história da humanidade, religião, filosofia e ciência tentaram elaborar um conceito preciso para ele e até hoje, se alguém pedir para que se diga em palavras o que é o tempo, uma dificuldade imensa se apresentará.

Às vezes, quando a linguagem falha, podemos recorrer às sensações, porque, na experiência, muito do que é percebido concerne ao indefinível. E o tempo para mim é assim, mais sentido do que dito. Quando leio uma notícia de um fato ocorrido há décadas, de certa forma me conecto com aquela época. Imaginando-a agora, ela passa a existir novamente.

Um exemplo intrigante desse aspecto ocorreu recentemente, quando lia o livro de memórias do farmacêutico Antenor Gomes de Barros Leal. Nele, o autor faz um relato pitoresco de um dia marcante em sua infância. O ano era 1910, numa Quixeramobim onde ainda não existia energia elétrica para clarear as ruas. Às quatro horas de uma tarde fria daquele ano, o céu já escurecia com as densas nuvens negras pesando sobre a vila.  Não demorou a cair a chuva. Animados, alguns homens se dirigiram às biqueiras que pendiam das paredes do mercado central. Relâmpagos reluziam a todo instante. Um trovão ribombou com tamanha intensidade que deixou as crianças mudas de medo. Aquele gigantesco estrondo foi a consequência de um raio que desabou sobre a fachada da igreja do Rosário. A força da natureza destruiu completamente o santuário próximo à cruz central, deixando preservada a imagem sacra. É dito que naquele mesmo dia outros dois raios foram os carrascos de um homem e de uma criança, mortos pela energia celeste.

Antenor relata também que nesse mesmo ano de 1910 ocorreu a passagem do cometa Halley. Numa bucólica cidadezinha, a comoção causada pelo inexplicável evento celestial foi imensa. As escadarias externas da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim ficaram repletas de velas, dia e noite, e não faltaram pessoas para acendê-las quando apagadas pelo vento. Todos estavam com medo do cometa, que por dias manchava o céu com sua cauda brilhosa. Os mais devotos acreditavam ser o prenúncio do castigo divino.

A segunda passagem do astro ocorreu setenta e seis anos depois. Foi nesse mesmo ano que o tempo começou para mim. Dessa vez, o progresso e a evolução social já não permitiram mais tamanha comoção semelhante àquela da passagem anterior. 

Passados quase quarenta anos desta segunda aparição, encontrei num antiquário um simpático relógio de pulso e de funcionamento à corda. O medidor do tempo trazia no ponteiro dos segundos o cometa Halley, fazendo-o girar a cada minuto. Era um relógio fabricado no ano de 1986, em comemoração à passagem do objeto celeste. Não resisti à engenhosidade da peça e decidi comprá-la.

Foi num livro que conheci a história de Antenor, que, setenta anos antes de mim, também brincou num dia chuvoso pelas mesmas ruas de Quixeramobim; eu e ele sentimos o mesmo medo do barulho forte do trovão. Agora, quando uso o relógio do cometa Halley, não lembro só do seu retorno e da coincidência do meu nascimento, mas recordo também do Antenor criança, impressionado, olhando para o céu estrelado, bem mais escuro do que o de hoje. Penso nas pessoas pelas calçadas, assustadas e com as faces voltadas para o firmamento, rezando e fazendo promessas contra um mal imaginado.

Por isso, não tento definir o tempo, apenas sinto-o nas conexões das emoções, nos sentimentos paradoxalmente compartilhados pelo encontro das existências.

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