A redação
da Academia Quixeramobinense de Letras, Ciências e Artes (Aquiletras)
entrevistou o seu membro-fundador, Prof. João Bosco Fernandes Mendes, ocupante
da cadeira nº 1, cujo patrono é o escritor Manuel de Oliveira Paiva, autor da
lendária obra ‘Dona Guidinha do Poço’. Na pauta está a reedição e ampliação do
livro ‘Quixeramobim – Recompondo a História’, de autoria do também acadêmico
Marum Simão (em memória). A obra teve a primeira edição lançada em 1996. Há alguns
anos, Simão vinha trabalhando para lançar uma segunda edição, no entanto, sua
morte, em julho de 2023, abortou esse plano. João Bosco Fernandes Mendes, amigo
de longa data e parceiro de pesquisa, assumiu o projeto.
‘Quixeramobim – Recompondo a História’ consolidou-se como um dos mais importantes documentos históricos do município. À época de seu lançamento, foi impressa uma tiragem de mil exemplares, que rapidamente foi esgotada, tamanho o relevo da pesquisa de Simão. Hoje, até mesmo em sebos e lojas de raridades é difícil encontrá-la.
Nesta entrevista, conduzida pela acadêmica Gabrielly Frutuoso, Diretora de Relações Públicas e Publicidades da Aquiletras, João Bosco Fernandes revela informações sobre o andamento da obra, fala da relação de amizade com Marum Simão e menciona outras importantes obras para conhecer a história de Quixeramobim.
Gabrielly Frutuoso – Prof. Bosco, o senhor assumiu uma importante missão: dar continuidade à finalização da reedição e ampliação do livro "Quixeramobim - Recompondo a História", de Marum Simão, obra essencial para todo aquele que desejar aprofundar-se na história do município em seus diversos aspectos. Como foi o processo de concepção do livro? Muitos não sabem, mas a princípio, a obra também teria sua assinatura, no entanto, Marum Simão finalizou o trabalho como único autor.
João Bosco Fernandes – Marum teve uma importância extraordinária em minha vida. A começar pelo convite para lecionar em Quixeramobim (português, inglês e um pouco de literatura). Na época eu estava saindo do seminário Salesiano, e talvez por isso ele me procurou. Desenvolvemos grande amizade e uma parceria mutuamente proveitosa. Preparávamos pequenos textos sobre a história de Quixeramobim, para apresentar na rádio (A Voz de Cristal) e para outros fins. Eu revisava os textos e datilografava (Marum nunca gostou de máquinas de escrever - ainda se lembram? - e de computadores). Quando viemos para Fortaleza - mais ou menos na mesma época - resolvemos escrever a história de Quixeramobim, de que já dominávamos muita coisa. E iniciamos a pesquisa, principalmente no Instituto do Ceará (já funcionava na Praça do Carmo). Mas, ao redigirmos o primeiro capítulo, surgiu-me um trabalho de pesquisa na Europa, e eu larguei o projeto do livro. Ele prosseguiu sozinho, com a disciplina que lhe era característica, e finalizou, alguns anos depois. E foi com prazer que revisei aquela primeira edição, de 432 páginas.
Gabrielly Frutuoso – Conte-nos um pouco sobre como era a sua relação com o Prof. Marum Simão... os assuntos acadêmicos, as pesquisas faziam parte dos temas de seus diálogos?
João Bosco Fernandes – Uma amizade extremamente importante. Tanto que era meu compadre, padrinho de um filho meu. Sempre trocávamos ideias sobre o que escrevíamos, um intercâmbio proveitoso.
Gabrielly Frutuoso – Sobre o livro, como o senhor definiria a importância dessa obra para o município de Quixeramobim?
João Bosco Fernandes – Já declarei, em outro local, que dificilmente um outro município de porte médio, Brasil afora, dispõe de um 'banco de dados' tão vasto e tão bem pesquisado quanto esse, contido no 'Quixeramobim, Recompondo a História'. Repleto de documentos e citações de autores de primeira linha (como Ismael Pordeus, de saudosa memória). E gostaria de salientar algo que muita gente ainda não entende, na elaboração da história de um povo. A história não é feita, essencialmente, pelos grandes chefes políticos, grandes generais e suas guerras sanguinárias. Ela é feita principalmente pelas pessoas simples, trabalhadores, donas de casa, e, no passado, por escravos (que muitos não se dão conta de que estes existiram em Quixeramobim, como no resto do país). Marum não caiu nesse erro. Por exemplo, aborda com seriedade as irmandades e confrarias religiosas, listando inclusive nomes de líderes e organizadores. Também abre espaço para os escravos, mostrando, entre outras coisas, que a Igreja do Rosário era reservada a eles - como em todo o Brasil. Usavam-se justificativas hipócritas, para esse 'apartheid', alegando que os negros atendiam à devoção de 'sua' santa. Mas por que a Igreja deles (do Rosário) ficava fora da cidade? Lembrar que, na época da construção daquele templo, a cidade vinha até o Riacho Capadócio - que passa (passava, hoje é subterrâneo) ali ao lado do Memorial de Antônio Conselheiro. Por isso, em minha principal obra, o romance histórico 'Mundo Novus Brasilis' (quase mil páginas, e por isso ninguém vai ler), que aborda o descobrimento do Brasil e os meandros da Corte Portuguesa, um dos protagonistas é um escravo.
Gabrielly Frutuoso – Já existe uma previsão de finalização e lançamento da obra?
João Bosco Fernandes – A ideia era lançar na Festa do Município, em agosto, mas infelizmente não foi possível. O trabalho que estou fazendo - revisão, edição, diagramação - deve ir além do fim deste mês (e estou trabalhando umas dez horas por dia). E, principalmente, toda editora pede uns dois meses, no mínimo. Principalmente agora, que estão lotadas com materiais da campanha política.
Gabrielly Frutuoso – ‘Quixeramobim - Recompondo a História’ certamente é uma das obras mais importantes da nossa historiografia, se não a mais importante. Se o senhor tivesse que listar outros livros importantes que devem compor a biblioteca dos quixeramobinenses interessados em conhecer suas origens, quais outras publicações o senhor mencionaria?
João Bosco Fernandes – Primeiro, 'Dona Guidinha do Poço', romance magistral de Manuel de Oliveira Paiva, que romanceou um evento componente da tradição do município, a história de Maria Francisca de Paula Lessa, a Marica Lessa. A obra mostra a cultura de Quixeramobim, em fins do século XIX (Paiva viveu em Quixeramobim por volta de 1889/1890 (faleceu em 29 de setembro de 1892), inclusive a linguagem de pessoas iletradas. E a leitura é extremamente agradável. Quem ler esse livro deveria ler também 'À Margem de Dona Guidinha do Poço', de Ismael Pordeus. Nele é mostrado, com provas documentais, que Oliveira Paiva inspirou-se na história de Marica Lessa, para construir seu romance. Os escritos de João Brígido (que residiu em Quixeramobim e foi companheiro do futuro Antônio Conselheiro) também têm muita coisa sobre Quixeramobim, esparsos em suas obras - uma delas, ‘Ceará, Homens e Fatos’, hoje difícil de encontrar (não sei se na Estante Virtual encontraria). Mas existe muita coisa numa antologia de João Brígido, elaborada por Jáder de Carvalho. E, finalmente, para não dizerem que não falei das flores, o meu livro 'O Lua', narra (romanceia) um crime que abalou o município, e até o estado, na época: o assassinato de José de Matos Luna, que invadiu a Voz de Cristal, prometendo quebrá-la - por razões políticas. E deu margem à 'reportagem' mais emocionante da história de Quixeramobim, ou do Ceará: o tiroteio foi descrito 'ao vivo', pelo dono da Voz de Cristal, Fenelon Augusto Câmara (que no romance aparece com o nome trocado, para evitar possível desagrado de alguém).
Gabrielly Frutuoso – Prof. Bosco, o senhor também tem vasto material publicado ao longo de sua carreira, diga-se de passagem, bastante profícua. Além da finalização do livro de Marum Simão, o senhor tem algum projeto pessoal no campo da pesquisa e literatura que queira compartilhar com o público?
João Bosco Fernandes – Sim, sem dúvida. Estou traduzindo minhas obras para o inglês. Já tenho uma quase pronta, sobre Américo Vespúcio (suspendi para fazer essa revisão do Marum). O motivo é que no Brasil se lê muito pouco. Para ter uma ideia, enquanto a média de livros lidos por ano, por pessoa, nos Estados Unidos são onze, no Brasil, é 1,3. E comecei pelo Américo Vespúcio porque o assunto interessa também aos americanos. Nessa obra mostro que a denominação 'América', derivada de 'Américo', foi uma fraude, talvez a maior da história. Se eu viver bastante (estou com 77, mas com boa saúde, graças a Deus) - pelo menos o quanto o Marum viveu, 89, pretendo traduzir minhas doze obras (publiquei oito, em português). Com ajuda desses softwares tocados à 'inteligência artificial' (não gosto deste termo), está mais fácil. Mas, como diz o vulgo, o futuro a Deus pertence.
Gabrielly Frutuoso – O senhor e o Prof. Marum foram os grandes responsáveis por existir hoje a nossa Academia de Letras. Quais aspirações o senhor tem para a academia? Que rumos almeja para esse colegiado?
João Bosco Fernandes – Acho que a Academia, em um município como Quixeramobim, precisa colocar metas distintas das grandes, como a ABL. Deve ter missões voltadas para a qualidade da cultura de nosso povo. E, pode parecer estranho, mas se preocupar mais com o 'consumo', isto é, a leitura. Como falei antes, esta sofre de raquitismo, inanição, entre nós. E sem leitura, não há salvação (cultural e até científica). Uma coisa - em que certamente ninguém pensa - é estimular o uso do livro digital. Este veio para ficar, assim como a prensa de Gutenberg (1400 - 1468), que veio disseminar a cultura nas massas populares. O livro digital é muito mais barato, de leitura mais agradável (podemos alterar o tamanho das letras, um recurso importante, consultar um dicionário de maneira rápida e confortável, fazer anotações, e adquirir os livros em menos de cinco minutos - isto, para quem mora em cidades sem grandes livrarias, é uma bênção. Antes que esqueça: meu livro ‘O Lua’ pode ser baixado da Amazon - apenas quinze reais - buscando no Google com o título da obra e o meu nome (João Bosco Fernandes Mendes).
A Academia poderia fazer uma campanha para distribuir o Kindle (da Amazon). Mas também pode-se usar o celular - alguns até preferem - baixando o aplicativo da Amazon, ou algum outro. Outra coisa: a Academia precisa de algum recurso do poder público. É um direito, a causa é nobre. Para isso, basta aprovar uma lei municipal, declarando a instituição de utilidade pública. Não é difícil. É em benefício de toda a coletividade.
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