quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Quando morre um poeta, todos choram

Antonio Cícero - Foto: Bárbara Lopes

Por Gabrielly Frutuoso

Tomou-me de assalto a triste notícia da morte de Antonio Cícero, formidável compositor, filósofo e poeta. Esta é a primeira semana do mundo sem a claridade de seu pensamento. O imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) subiu aos céus, muito embora ele mesmo não cresse nisso, sendo, pois, ateu. No exato segundo em que meus olhos se depararam com a manchete do jornal, fui consumida por um estranho vazio e um silencio sufocante, como se tivesse perdido um estimado amigo, um velho conhecido. Não deixa de ser. “Quando morre um poeta, todos choram”, diz o samba de Nelson Cavaquinho.

Nos dias que antecederam tal fato, estive obcecadamente debruçada sobre seus artigos publicados na Revista Brasileira, periódico da ABL, bem como em seu blog ‘Acontecimentos’, sem conseguir parar de ler. No entanto, minha relação com o erudito poeta, mágico das palavras, começou bem antes disso, já que era ele o nome por trás das canções de sua irmã, Marina Lima, que foram pano de fundo de muitas noites.
 
“O amor são fogos que se acendem sem artifícios.”

(O lado quente do ser – Antonio Cícero/Marina Lima)

Outros artistas de relevo gravaram suas letras, caso de Gal Costa, João Bosco, Lulu Santos, Maria Bethânia e Zizi Possi, para citar só alguns dos mais célebres.
 
“Não lhe peço nada/
Mas se acaso você precisar/
Por você não há o que eu não faça”

(Pelos Ares – Antonio Cícero/Adriana Calcanhotto)
 
Mais adiante tomei contato também com os poemas de Cícero, que se consolidou com ‘Guardar’, entrando, em 2001, na antologia ‘Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século’, organizada por Ítalo Moriconi. Ei-lo:
 
GUARDAR

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.”

A poucos dias de Cícero adormecer pela última vez, fui tocada por um de seus poemas, uma declaração ao esposo Marcelo – muso de inumeráveis versos.
 
DECLARAÇÃO

Quantas vezes lhe declarei o meu amor?
Declarei-o verbalmente inúmeras vezes
e o declaram todos os meus gestos tendentes
a você: a minha língua, a brincar com o som
do seu nome, Marcelo, o declara; e o declaram
os meus olhos felizes quando o vêem chegar
feito um presente e de repente elucidar
a casa inteira que, conquanto iluminada,
permanecia opaca sem você.

(Antonio Cícero)
 
Antonio Cícero fazia parte de uma categoria de poetas – raros – capazes de “fundir o mais profundo ao superficial”. Leitor e tradutor em grego clássico e arcaico, e em latim, de inteligência que só ocorre no mundo de tempos em tempos, ainda assim, manteve-se longe da soberba intelectual. Difícil não admirar o poeta, mas também a pessoa do poeta.

“Como não te perderia
Se te amei perdidamente
Se em teus lábios eu sorvia
Néctar quando sorrias
Se quando estavas presente
Era eu que não me achava
E quando tu não estavas
Eu também ficava ausente”

(Canção do Amor Impossível – Antonio Cícero/Bruno Cosentino)

Cícero é bonito e luminoso. Tudo nele é poema, até mesmo o fim que escolheu para si, demonstrando uma coragem de poucos e expressando a coerência inabalável com que passou pela vida. “Nunca conheci alguém tão entregue ao presente, sem medo nem esperança”, descreveu o amigo e parceiro musical Arthur Nogueira. Autorevelou-se na proeminência de sua obra: “os momentos felizes/não estão escondidos/nem no passado e nem no futuro.” Após um diagnóstico de Alzheimer, vendo-se impossibilitado de escrever poemas – aquilo de que mais gostava – e de ler – aquilo que mais fazia – optou por partir; morrer por escolha própria, com dia e hora marcados. Para um catedrático da filosofia, cuja substância é essencialmente a razão, a morte do corpo é menos impiedosa do que a morte da lucidez. Escolheu retirar-se do mundo em procedimento de morte assistida, na Suíça. Sua colega na ABL, a escritora Rosiska Darcy referiu-se a ele como “doce príncipe” e disse que “Antonio Cícero escolheu morrer como viveu. Toda a sua vida é um exemplo de dignidade e liberdade. Morreu dignamente exercendo sua última liberdade.”
 
O FIM DA VIDA

E não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada
Ela é tudo e o resto, nada.

(Antonio Cícero)
 
Chego a lamentar não ter topado com tão elegante figura nas ruas de Paris – cidade que amava e que escolheu visitar antes de seu sono profundo – ou em uma noite carioca qualquer; não ter recebido ligações suas ou um e-mail inesperado para mostrar um novo poema; não tê-lo podido chamar de amigo, saber de suas confidências e ouvir suas lamúrias. Contudo, onde mais um poeta poderia se mostrar tão despido e inteiro senão em seus próprios versos? Em que espelho sua imagem poderia reluzir de forma mais cristalina? Prefiro pensar que, quando aqueles que admiramos estão mortos, só nos resta viver para reverenciar a permanência de seus feitos. Se eu quiser encontrar Antonio Cícero, ainda posso procurá-lo no movimento circular das faixas de um toca-discos ou em uma das incontáveis páginas que escreveu. Eis porque a arte é uma janela aberta para a infinitude.

Nenhum comentário:

Postar um comentário